ÉTICA III



A ÉTICA DA LEI E A ÉTICA DA PSICANÁLISE


1. A Lei kantiana e a ética do desejo

Kant critica todas aquelas teorias morais que regulam o agir humano. Em outras palavras, se Kant desarticular as elaborações tradicionais da moral que permanecem no âmbito da razão.
A moral Kantiana exclui a ideia de que possamos ser regidos se não por nós próprios. É a pessoa humana, ela própria, que é a medida e a fonte do dever. O homem é criador dos valores morais, dirige ele próprio a sua conduta. Kant parte do pressuposto hobbesiano de que o homem é egoísta por natureza, ou seja, age movido por interesses pessoais. Para satisfazer esses desejos é capaz de praticar os mais insólitos atos. Assim, para que o homem possa se constituir em um ser moral ele precisa controlar essa inclinação natural e permitir que a razão determine a sua conduta, que, a partir de então terá validade e alcance para além de si mesmo. A ética Kantiana é a expressão da supremacia do interesse coletivo sobre o individual.
Mas, para o filósofo, a razão humana teria três destinações: determinar o que podemos conhecer (razão teórica), prescrever como devemos agir (razão prática) e compreender o que torna algo belo (faculdade de julgar). Ela, em qualquer dessas vertentes, seria universal em sua FORMA (a mesma para todos os homens e em todos os lugares e tempos), mas variaria em seus conteúdos.
Assim, a moral de Kant é uma moral racional: a regra da moralidade é estabelecida pela razão - O Princípio do dever é a pura Razão. A regra da ação não é uma lei exterior a que o homem se submete, mas é uma lei que a razão, impõe à sensibilidade. Nestas condições, o homem, no ato moral, é ao mesmo tempo, Legislador e Súbdito. A partir da vontade pura formulada por Kant para pensar a ética do dever, Lacan formula, analogicamente, um desejo puro para a ética da psicanálise. Isso é um ponto de virada kantiano tão fundamental que, sem ele, a psicanálise não teria sido possível. Não seria possível pensar o sujeito de que trata a psicanálise sem a ideia de que há nele algo que não está submetido às leis da natureza, ao condicionado ou ao patológico. Aquilo que no sujeito aponta para além do princípio do prazer é, assim, fundamental para Lacan construir uma ética que coloca o desejo em primeiro plano.

2. O sexo e a lei em Kant e a ética do desejo em Lacan

Para falar de uma ética que leva em conta o desejo, Lacan recorre à teoria kantiana, pois de um modo similar com que Kant aborda a vontade moral, ou seja, purificando-a de seu aspecto fenomênico, Lacan pretende abordar o desejo. Partindo da vontade pura kantiana, Lacan procura designar um desejo puro, desatrelado de qualquer referência a ideais. Entretanto, ao estabelecer um desejo puro Lacan depara-se com problemas delicados, que serão abordados no decorrer do capítulo. Estamos no final do Seminário VII, A ética da psicanálise.
A ética kantiana consiste num equilíbrio entre lei e liberdade, ou seja, a lei moral é compreendida como lei da causalidade pela liberdade. Neste contexto está claro que o centro do problema da moralidade em Kant está na relação entre liberdade e lei, a questão é compreender qual é a natureza dessa relação.
Lacan encontra em Kant e Sade pontos importantes para abordar aquilo que está para além do Princípio do Prazer e, portanto, como vimos, está no campo do gozo.
A lei que diz que “qualquer um pode me dizer” que possui o direito de usufruir o “meu corpo, sem que nenhum limite detenha o capricho das extorsões que se tenha gosto de nesse corpo saciar”, não significa deixar agir livremente o que seria da ordem das inclinações patológicas kantianas. É preciso ir além dos afetos e das convenções sociais, como aponta Laia, para poder seguir essa lei e estar a serviço da “natureza”, tal como Sade a compreende. Assim, para Lacan, a ética sadiana é uma ética que se destaca de toda referência a um objeto da afeição, seja ele qual for, ou seja que se destaca de toda referência ao objeto patológico, objeto de uma paixão, qualquer que ele seja. Nas palavras de Lacan, a ética de Sade é “uma ética que se destaca de toda afeição patológica a um objeto” (Lacan, 1997, p. 98).
“Atualmente podem se fazer contratos matrimoniais ou considerar por direito uma união estável contemplando as mais diversas variáveis, por exemplo, podemos fazer contratos matrimoniais com separação de bens (parcial ou total), podemos legalizar a relação entre pessoas do mesmo sexo, mas em nenhum caso podemos pautar a possibilidade contratual do uso da genitália fora da relação entre os contratantes. Por exemplo, um cartório poderia aceitar um contrato matrimonial que declarasse que os bens (fazendas, barcos, investimentos financeiros, etc.) não serão compartilhados, mas nenhum cartório aceitaria um contrato matrimonial que declarasse que a genitália será utilizada uma vez por semana fora do contrato e para usufruto pessoal.
Esse moralismo também se verifica na exclusão do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Aqui então temos o segundo caso que havíamos deixado em suspense algumas páginas atrás. Se bem Kant decide que o matrimônio não se funda em reprodução e sim em usufruto, no caso de união entre pessoas do mesmo sexo a caracterização que ele faz é de contra natura. Ora, o próprio Kant destaca que o matrimônio se sustenta mesmo entre pessoas inférteis por qualquer razão justamente por se tratar de usufruto e não de reprodução. ”
A lei kantiana quanto a ética dos desejos tratam dessa satisfação do prazer, e em alguns pontos se convergem e noutros se distanciam. Podemos dizer, que a lei em Kant e na Ética dos Desejos se relacionam no pensamento sobre a constituição do sujeito constituída, onde lei e sexualidade se dão numa experiência analítica. Também se relacionam quanto à compreensão de que a lei manda sobre o sujeito de qualquer modo e de que a sexualidade gera paradoxos em relação com a lei moral. Ambas afirmam que o homem obedece à lei porque sente a força da lei mandando nele, uma vez que a lei é imperativa e manda por coerção.
A lei kantiana legisla sobre o usufruto do corpo do outro, ou seja, há uma redução do outro a objeto de gozo para que o matrimônio funcione como união sexual. O seu contrário seria o imperativo sádico. Nele se estabeleceria a condição de poder gozar da totalidade ou de uma parte do corpo do outro e vice-versa. A ética do desejo de Kant é herdeira de uma reformulação da ética kantiana à luz da contraposição com a cena sadiana, esta operação teórica nos permite pensar lei e sexualidade como constitutivas do sujeito em uma experiência analítica. E quando Kant em sua filosofia prática, fala que a "sexualidade gera algumas contradições em relação com a lei moral difíceis de conciliar, a situação mais misterioso está na noção de matrimônio, que reduz o outro a objeto de gozo, desconhecendo a humanidade que o kantiano deveria reconhecer”, segundo ele, "só se pode ter relações racionais com outro que também possa estar submetido à mesma lei à qual está obrigado”. 

Considerações Finais

Quando consideramos a ética e o direito sobre o corpo do outro em termos de usufruto sexual nos deparamos com algumas limitações dentro da reflexão kantiana. O problema de considerar o outro como pessoa ou objeto de usufruto nos coloca em um paradoxo.
As posições inversas de Kant em Sade como vêm até aqui parece não resolver o problema. Por isso ensaiamos uma reconstrução da questão desde Lacan. Nessa perspectiva, estamos em condições de formular a pergunta fundamental: agiste em conformidade com teu desejo? (Lacan, 1959-60, 373). A pergunta, é claro, não busca um final feliz, até porque sabemos desde Kant que nada garante a felicidade, nem mesmo uma ética dos bens. O que a experiência analítica busca é um para além do dever, dos bens, da lei. O que busca é uma certa transgressão do sujeito perante a inter­dição, uma certa função ética do erotismo que nos permite, em definitiva, que algo, como efeito, apareça como sujeito de desejo. Assim, a experiência que aco­lhe a relação entre sujeito e objeto do desejo não se resolve em uma relação cognitiva, mas ética.
Kant e Sade marcam um privilégio da dor como sentimento nevrálgico da ação. Um tipo específico e bastante pe­culiar de dor, a humilhação é um sentimento a priori em Kant. Mas é preciso dizer que este sentimento deve ser ultrapassado até alcançar a apatia nos dois casos. Para além desta situação, a ética do desejo não se articula pelo sentimento de culpa, mas com a noção de responsabilidade. A implicação subjetiva não é outra coisa que se defrontar com o desejo, inclusive nos sonhos e nos lapsos ou em qualquer outra forma de apresentação das fantasias.

O fato de se defrontar com as fantasias como o que são de fato, com tudo o que isso implica para a vida de um sujeito, talvez seja o momento afetivamente mais duro da experiência analítica como experiência ética. Nessa situação não há culpa, nem própria, nem alheia. Não há álibi na obrigação, no dever, na necessidade natural ou his­tórica. Só resta um ato analítico como gesto ético. Nesse sentido, podemos entender a psicanálise como uma experiência ética que já não busca a legitimação do usufruto sexual na lei do imperativo categórico ou do imperativo do gozo. Os desdobramentos dessa perspectiva nos conduzem às diferentes elaborações do indivíduo com o desejo em um laço social.


Trabalho apresentado pelos alunos da Universidade Federal do Espirito Santo, curso de Filosofia à disciplina de Ensino de Filosofia sob a orientação dos professores Jorge Augusto da Silva e Jorge Luiz Viesenteiner como requisito avaliativo. Componentes do grupo: Cláudia Oliveira, Luana Lacerda e Willias Bastos

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